Acredite : o fator humano não é somente o erro

Errare humanum est, perseverare autem diabolicum (Santo Agostinho)
(Errar é humano, permanecer no erro é coisa do diabo)

Uma situação que sempre ronda qualquer discussão sobre o fator humano x erro humano está de certa forma expressa na frase de Santo Agostinho: todo erro é humano, o problema, ou o diabo como disse o santo homem, está quando se persiste no erro. Para o que pretendemos discutir aqui vamos deixar o diabo de fora, pelo menos por enquanto, e falar apenas do que nós humanos fazemos.

Quando pensamos em termos de uma organização humana, como por exemplo uma industria, um comércio, uma fundação, podemos simplificar essa idéia dizendo que os mesmos são um agrupamento de pessoas que atuam para atingir um objetivo comum, que executam tarefas numa gestão combinada entre a técnica e as pessoas, que estão em interação com o ambiente, tudo isso no que podemos chamar de um sistema sociotécnico. Nenhum outro animal atua com esse nível de consciência, nenhum outro cria o seu trabalho e modifica dessa forma o mundo.

É devido a nossa reconhecida inteligência, que podemos afirmar que excluindo os eventos naturais que não sofreram nenhuma intervenção humana, todo o resto é responsabilidade de nós humanos, daí que é “humanum est”. É também por isso que podemos afirmar que se traçarmos uma linha do tempo que retroceda a partir de qualquer evento, sempre teremos pessoas presentes nos diversos momentos. Desde a operação, na execução da manutenção, nos procedimentos, na construção, no desenho do projeto, na interpretação das normas, na concepção, ou seja, desde a idéia inicial. São várias as possibilidades de acontecer algum erro, e é por isso que em última instância ao chamarmos de erro humano as falhas que acontecerem, estamos na verdade sendo redundantes, pois na maioria das vezes, só humanos atuaram nesse percurso.

Por compreendermos a origem do fator humano em qualquer erro é que o nosso objeto de interesse não deve se limitar apenas ao último elo da corrente, mas sim a todas as condições que fazem um indivíduo acertar e errar numa atividade, pois são elas que constroem tanto um como o outro. Isso pode exigir vários questionamentos: Seguiu o procedimento ou o adaptou? Se não seguiu, desde quando? Foi exigência do grupo, da tarefa ou do seu modo de fazer? Desconsiderou o alarme? Porque? Contornou, desligou, bypassou? Porque agiu assim? Qual intenção? As análises de acidente raramente entram neste nível de detalhamento, é muito custoso e pode ser mais fácil ver apenas o ato faltoso individual esquecendo o di a dia da atividade. Às vezes é difícil para uma organização interrogar assuntos que são partes da sua cultura, estão enraizados na sua vida, e podem não ser percebidos como acidentogênicos.

Uma boa análise sobre a origem do fator humano pode levantar questionamentos sobre a interligação entre os eventos que o precederam, pode esclarecer as justificativas dessas ligações e considerar não só as atividades de trabalho, mas também a tarefa real e as suas reais condições de execução. Também pode analisar os objetivos, as motivações do executante, as interferências, etc.. Essa avaliação precisa ser abrangente, mas sabemos como isso é difícil de ocorrer durante o calor dos eventos.

Foi o que percebemos que acontece quando há um acidente, incidente ou mesmo um quase acidente. Nesse momento surge uma tendência muito peculiar na análise do evento: o medo das consequências para as pessoas envolvidas. Conforme as implicações com o evento são levantadas, a depender de cada situação, poderão ocorrer responsabilizações para quem estiver envolvido, que pode ir da mera repreensão até uma punição, uma perda de cargo ou promoção, a necessidade de indenizar, ou mesmo uma demissão, sem falar que se houver um óbito envolvido as consequências podem atingir a esfera penal. Por todos esses aspectos, entendemos que a existência desse viés punitivo / defensivo dificulta qualquer abordagem da situação por quem tentar analisá-la. Como ninguém quer ser responsável pelo erro, os envolvidos se fecham em posições defensivas e crescem as dificuldades de se estabelecer um diálogo produtivo do ponto de vista da segurança e da prevenção de acidentes. É dentro dessa problemática que o profissional de saúde e segurança do trabalho deve se debruçar, tentando criar as condições para prever eventos similares no futuros. Mas como evitar essa contaminação da análise pelo viés defensivo? Como elaborar os aprendizados que poderão mitigar situações futuras semelhantes?

No nosso entendimento será muito difícil nesse momento, mas não quer dizer que é impossível obter ganhos duradouros de aprendizagem após qualquer evento. Uma ressalva necessária aqui é sobre eventos traumáticos, eles podem até serem usados como moderadores para a aprendizagem, mas mesmo um grande trauma será esquecido com o passar do tempo. E nenhuma organização quer aprender através do trauma. O bom e permanente aprendizado vai acontecer quando a cultura da organização mudar de forma sustentável. Será longe dos eventos e suas reações adversas, na normalidade do dia a dia, através de ações coordenadas que identifiquem os aspectos negativos dos fundamentos do funcionamento da organização.

O papel que caberá ao profissional da área de segurança do trabalho, em contato direto com os executantes, será o de conciliar a sua visão de especialista e através de metodologias colaborativas de trabalho, facilitar as discussões sobre a segurança real no cotidiano da atividade. Longe dos eventos adversos ele pode intervir de uma forma mais neutra, sem uma conotação de culpa ou de qualquer outra emoção que possa interferir de forma negativa. Ao envolver as equipes, suas competências e seus conhecimentos dos processos de trabalho novos saberes irão ser construídos nessa dinâmica, ao mesmo tempo isso permitirá às equipes compreender todos seus esforços para minimizar o erro humano nas suas atividades. Inclusive aqueles bem sucedidos.

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